AS SUTILEZAS NÃO TÃO SUTIS DO DESTINO

Marcelo Menezes Reis


A história que será narrada a seguir é um exemplo clássico das sutilezas do destino, e de como a arrogância e prepotência do ser humano (ou de alguns seres humanos em posições de poder) podem causar males que excedem a duração e a amplitude de sua existência.

Fontes:

TUCHMAN, Barbara. Os Canhões de Agosto. Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 1994

HUMBLE, Richard. A Marinha Alemã (a esquadra de alto mar). História Ilustrada da Segunda Guerra Mundial. Editora Renes, Rio de Janeiro, 1974.

Retornemos ao fim do século XIX.


ÍNDICE

- Preâmbulo histórico.

- A Corrida Naval.

- Onde o Brasil entra nisso?

- A arrogância britânica.

- A viagem do Goeben.

- Epílogo.


Preâmbulo histórico

Grande parte da história do Século XX está vinculada à história de um país chamado Alemanha, que só passou a existir como nação unificada em 1871. Tal feito foi possível devido à astúcia e visão do chanceler prussiano Otto von Bismarck, que valendo-se do melhor exército da Europa à época, em apenas dez anos conseguiu criar o Império Alemão sob a égide do antigo Reino da Prússia, cujo rei passou a ser o Imperador Alemão, ou simplesmente "o Kaiser". Em 1864 a Prússia toma os ducados de Schleswig-Holstein da Dinamarca em uma rápida campanha, em 1866 vence a Áustria na batalha de Sadowa eliminando a influência austríaca na Alemanha central, e, usando o sentimento nacional alemão derrota fragorosamente a França, na guerra Franco-Prussiana de 1870-71 (o que acabou causando a derrubada do Imperador Francês Napoleão III, e a instauração da Terceira República na França). Em 1871, em pleno Palácio de Versalhes, é proclamado o Império Alemão e o rei da Prússia passa a ser o Kaiser Guilherme I (Willhem I) da dinastia Hohenzolern.

A partir daí a Alemanha inicia um processo de crescimento econômico-industrial que a levaria a ultrapassar a supremacia econômica britânica, juntamente com os EUA, em fins do século XIX. Contudo, após vencer a França, e contra a vontade de Bismarck, a Alemanha exigiu uma parcela razoável do território francês, rica em minérios, a região da Alsácia-Lorena, além de outras compensações financeiras, que visavam manter a França como potência de "segunda classe" para sempre. Mas o que aconteceu foi justamente o contrário, a derrota humilhante, a perda de territórios, as pesadas indenizações, criaram na França uma verdadeira obssessão: retomar a Alsácia-Lorena e "dar uma lição na Alemanha". Praticamente todo o povo francês, e mais especificamente o exército francês esperava ansiosamente pelo momento da revanche. Sabendo disso, Bismarck pautou toda a política do novo Império Alemão em uma linha básica: isolar a França, impedi-la de aliar-se a qualquer outra potência no continente, pois, sozinha, a França não teria condições de impor uma derrota "decisiva" à Alemanha. E enquanto ele foi chanceler (durante vinte anos) foi muito bem sucedido.

A França não encontraria apoio na Inglaterra, pois disputava várias colônias com este país na África e na Ásia, e a Alemanha não (ainda...), e a Inglaterra não tinha interesse em envolver-se diretamente no continente Europeu. Havia outro agravante, a rainha Vitória tinha muitos parentes na Alemanha, uma de suas filhas era casada com o herdeiro do trono alemão, seu falecido marido era alemão, e a França era uma república. No leste encontravam-se dois impérios autocráticos e ainda parcialmente feudais, o Império Russo e o Império Austro-Húngaro, que também não nutriam grandes simpatias por regimes republicanos, e que graças à engenhosidade de Bismarck estavam unidos à Alemanha no dreikaserbund, o pacto dos três imperadores ardorosamente defendido por ele como uma muralha contra a "desordem" (os nacionalismos das minorias étnicas, movimentos operários, etc), e havia também os elos dinásticos entre as casas reinantes dos três países. Mas, nem tudo eram flores. Comparável ao problema entre França e Alemanha os olhos da Europa voltavam-se para uma região muito conturbada à época: os Bálcãs.

A região dos Bálcãs era (e continua sendo) um caldeirão étnico-religioso onde se encontram dezenas de etnias (eslavos, gregos, turcos, germânicos, etc), três grandes grupos religiosos (católicos romanos, muçulmanos, cristãos ortodoxos), três alfabetos (latino, cirílico e árabe) que apresentava apenas uma unanimidade: o repúdio ao secular domínio otomano. Todos defendiam a expulsão dos turcos da Europa, a constituição de nações independentes, e os de etnia eslava e religião cristã ortodoxa queriam que tais nações ficassem sob a "proteção" do Império Russo. Este, na ânsia de alcançar uma saída para o Mar Mediterrâneo tudo fazia para alimentar os nacionalismos balcânicos, algo que o Império Austro-Húngaro não podia permitir, pois este nacionalismo ameaçava "contaminar" a considerável parcela da população do Império que tinha ascendência eslava. A Inglaterra também não via com bons olhos o expansionismo russo, tanto na Europa quanto na Ásia Central, e por várias vezes teve que atuar em conjunto com outras potências para parar os russos (temendo que tal expansão ameaçasse suas rotas comerciais para a Índia). Este antagonismo entre Áustria-Hungria e Rússia devido aos Bálcãs era o calcanhar de Aquiles do dreikaserbund, pois tanto uma como a outra tinham, apesar de tudo, boas relações com a Alemanha, sem nenhuma discórdia séria. Durante muito tempo Bismarck conseguiu manter a aliança, mas em 1887 o pacto ruiu devido à divergências entre Rússia e Áustria pelo "controle" sobre a Bulgária. Posteriormente a Alemanha escolheu ficar com a Áustria, permitindo portanto a possibilidade de uma guerra em duas frentes no futuro. Os Bálcãs foram palco de várias crises internacionais durante o fim do século XIX e início do século XX (guerras entre países, intervenções de grandes potências, surgimento de estados, etc), e eram vistos como o barril de pólvora da Europa (Bismarck afirmava que a próxima guerra começaria devido "à alguma bobagem nos Bálcãs"), e foi realmente ali que se deu o fato que precipitou a I Guerra Mundial.

Há um outro personagem importante nesta história, o Império Otomano, herdeiro do Império Árabe, que no século XIX ainda dominava quase toda a península balcânica, bem como o Oriente Médio e, ao menos nominalmente, todo o norte da África, incluindo o Egito. Era conhecido como o "homem doente da Europa", pois vinha se fragmentando lentamente, perdendo territórios para outras potências na África, e vendo seus territórios balcânicos transformando-se em nações independentes ou anexados por Áustria e Rússia. Havia uma rivalidade "milenar" entre turcos e russos, e durante o século XIX os dois países guerrearam duas vezes: na Criméia, em 1854-56, quando apoiado por Inglaterra e França o Império Otomano venceu, e em 1877-78 quando os russos venceram. A Inglaterra sempre se esforçava para apoiar os turcos, no intuito de usá-los como anteparo para o expansionismo russo, mas no fim do século XIX os "estadistas" ingleses questionavam-se se não haviam escolhido o títere errado, talvez ter escolhido os russos em 1854 tivesse sido mais inteligente... Todas as potências européias esperavam a fragmentação do Império Otomano, mas não toleravam que nenhuma outra tentasse fazê-lo isoladamente, todas esperavam que ele desmoronasse por si só. Mas o "homem doente da Europa" teimava em permanecer vivo...

Não obstante, estando a França isolada, havia um relativo equilíbrio na Europa, e uma guerra européia parecia distante. Então ocorreu algo que pode sempre acontecer com o governo de um país monárquico em que o soberano ainda detém um considerável poder, como era o caso da Alemanha. Em 1888 o Kaiser Guilherme I faleceu, seu filho Frederico-Guilherme, um dos genros da rainha Vitória da Inglaterra, governou por três meses e veio a falecer também de um câncer fulminante. Seu filho mais velho, portanto neto da rainha Vitória, tornou-se o novo imperador, o Kaiser Guilherme II (Willhem II), e revirou a política alemã de pernas para o ar: falastrão e megalomaníaco, não admitia a manutenção da "prudente" política externa de Bismarck. Para ele a Alemanha teria que se expandir no Ultramar, criar uma poderosa marinha de guerra, enfim ser a potência preponderante da Europa, uma vez que era "direito" da Alemanha sê-lo, e se houvesse guerra esta seria justificada pela "necessidade" da Alemanha em fazê-la. Nutrida por filósofos e pensadores, em sua maioria militaristas, e pelas doutrinas de darwinismo social, supremacia branca, etc, a Alemanha precipitava uma futura crise.

Em 1890 o Kaiser Guilherme II afasta Bismarck, e passa a ser ele próprio o principal artífice da política externa alemã, ou mais especificamente da parte mais visível e barulhenta desta política. Os resultados imediatos foram a incrível aproximação entre França e Rússia, o que significava a ameaça de uma guerra em duas frentes para a Alemanha, e a médio prazo houve vários atritos sobre possessões na África, notabilizando-se as crises no Marrocos. Mas, faltava um ingrediente para precipitar a hecatombe, a Alemanha ainda mantinha boas relações com a Inglaterra, mas a megalomania do Kaiser cuidaria disso em breve.


A Corrida Naval

Um dos livros que teve maior impacto nos meios militares do século XIX foi "A influência do poderio naval na história" do almirante Alfred Mahan, da marinha dos EUA. Neste livro o autor mostra que toda potência só terá a hegemonia mundial se controlar os mares e citava a Inglaterra (parece, hoje, óbvio, uma vez que os EUA realmente seguiram o conselho de Mahan). Este livro teve um grande impacto sobre o Kaiser Guilherme II, que ordenou a um dos seus preferidos, o almirante Tirpitz, que construísse uma frota de guerra capaz de rivalizar com a Grande Esquadra Britânica, e lhe deu os meios necessários através da Lei Naval (alemã) de 1900. Os ingleses e alguns políticos alemães advertiram que aquela frota seria a "Alsácia-Lorena" entre a Inglaterra e a Alemanha, que não era o momento para uma corrida armamentista, mas o Kaiser não deu atenção a isso. E os ingleses, por sua vez, não iriam ficar sentados olhando a Alemanha construir uma frota em suas barbas, em pleno Mar do Norte, e intensificaram a produção de navios de guerra. O resultado concreto disso foi uma desenfreada "corrida naval" nos primeiros anos do século XX, em que cada país queria ter uma armada maior e mais poderosa do que o outro, além dos exércitos igualmente enormes para a prevista guerra terrestre que viria: provavelmente os únicos beneficiados foram os fabricantes de armas e navios, que tiveram lucros enormes neste período.

A corrida naval teve porém um ponto de inflexão extremamente importante. Em 1905 Sir Jack Fisher assumiu o posto de Primeiro Lorde do Mar da Inglaterra (chefe de estado-maior da marinha), e, alarmado com a expansão da marinha alemã e com o aparente atraso da marinha britânica encomendou um navio revolucionário, o "Dreadnought", um couraçado com nada menos do que dez canhões de doze polegadas, e três nós mais veloz do que os melhores navios existentes até então. Confiando na capacidade superior dos estaleiros britânicos Fisher pretendia criar uma frota de "Dreadnoughts" que suplantasse tecnologicamente todas as outras armadas. O navio foi construído em tempo recorde, e entrou em operação em 1906. Declarou-se que todas as marinhas somente seriam "modernas" se tivessem couraçados tipo "Dreadnought" (o que era um exagero, mas aumentou consideravelmente as encomendas dos estaleiros), e a corrida naval intensificou-se ainda mais.

Além de construir navios para suas próprias marinhas as grandes potências muitas vezes produziam belonaves para nações "amigas", fora da Europa. Sim, porque o fascínio com as grandes armadas existia em vários países: com ajuda britânica o Japão estava construindo uma poderosa frota (que utilizaria para vencer a China em 1894-95 e derrotar fragorosamente a Rússia em 1904-05), os EUA (durante o governo do presidente Theodore Roosevelt) também expandiram sua frota, e até mesmo alguns países da América Latina também queriam ter "Dreadnoughts", e entre esses países incluía-se o Brasil.


Onde o Brasil entra nisso?

A idéia de criar uma grande frota brasileira nos moldes europeus foi defendida pelo Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores do Brasil no início do século XX (de 1902 a 1912). Graças aos seus esforços o Brasil encomendou três poderosos couraçados tipo "Dreadnought" a estaleiros ingleses: os navios Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Claro que a ação do Brasil acabou levando a Argentina a atuar de forma semelhante, mas seus navios foram construídos nos EUA.

Os dois primeiros navios foram lançados em 1907 e completados em 1910. Dispunham de doze canhões de doze polegadas e deslocavam cerca de 20000 toneladas (para se ter uma idéia o aposentado Porta-Aviões Minas Gerais da Marinha do Brasil deslocava cerca de 20000 toneladas). Os navios constituíram uma das frotas de batalha mais poderosas do mundo, mas a desumanidade do tratamento infligido aos marinheiros (que ainda eram castigados por chicoteamento, enquanto nas outras marinhas isso fora banido 40 anos antes...) levou à Revolta da Chibata, em que os marinheiros ameaçaram bombardear o Rio de Janeiro se suas reivindicações não fossem atendidas.

Mas e o terceiro navio? Foi iniciado em 1911 e lançado em 1913, sendo o mais poderoso "Dreadnought" já construído: deslocava 27500 toneladas, e tinha quatorze canhões de doze polegadas. O governo brasileiro desinteressou-se dele, possivelmente devido à morte do Barão do Rio Branco, ocorrida em 1912. Sendo assim, o navio foi colocado à venda na Inglaterra, e o seu feliz comprador foi o Império Otomano (Turquia) que o rebatizou como Sultan Osman I. Quando estourou a I Guerra Mundial o navio estava sofrendo as adaptações necessárias para a transferência aos turcos, que JÁ HAVIAM PAGO O NAVIO (e por outro o Reshadieh), mas os ingleses tinham idéias diferentes...


A arrogância britânica.

No dia 28 de Junho de 1914 o arquiduque austríaco Francisco Ferdinando (herdeiro do trono austríaco) foi assassinado em Serajevo, capital da Bósnia-Herzegovina (...). Esta região dos Bálcãs foi anexada pela Áustria-Hungria em 1908, e sempre houve muita agitação contra a dominação austríaca. Descobriu-se que o assassinato fora um complô planejado pelo serviço secreto da Sérvia, nação balcânica que era uma verdadeira pedra no sapato da Áustria, com o intuito de fazer talvez com que a Bósnia passasse à "proteção" sérvia. Apoiada decisivamente pela Alemanha (o famoso e infame "cheque em branco") a Áustria declarou guerra à Sérvia em 28 de Julho e os mecanismos das alianças internacionais, longamente planejados, colocaram-se em curso. Por ser uma nação predominantemente eslava a Sérvia sempre fora apoiada pela Rússia, e a França era aliada da Rússia, logo se a Alemanha apoiava a Áustria contra a Sérvia acabava reunindo contra si própria a França e a Rússia, tornando realidade a ameaça de uma guerra em duas frentes, e uma guerra européia total era iminente: a Rússia não poderia permitir mais uma humilhação por parte da Áustria (em 1908 a Áustria anexou a Bósnia-Herzegovina e a Rússia não pode fazer nada por estar enfraquecida pela derrota sofrida na guerra contra o Japão e a Revolução de 1905), e o plano de guerra da Alemanha previa um rápido ataque à França para depois se voltar contra a Rússia. Nominalmente aliada da França e da Rússia a Inglaterra precisava de um "motivo sério" para declarar guerra à Alemanha (precisava de algo para se parecer com o "mocinho" da história), o que seria obtido no início de Agosto quando os alemães violaram a neutralidade da Bélgica (que eles haviam garantido que não fariam...). Neste ínterim, ameaçada por uma guerra em duas frentes a Alemanha voltou-se para o Império Otomano, que controlava os estratégicos estreitos do Bósforo e de Dardanelos, porta de entrada para o Mar Negro, rota comercial absolutamente vital para a Rússia: conseguir uma aliança com a Turquia facilitaria enormente a guerra para os alemães, pois França e Inglaterra teriam maiores dificuldades em fornecer suprimentos aos russos.

Desde fins do século XIX o Império Otomano vinha sendo solenemente desprezado pela Inglaterra, particularmente pelo Primeiro Lorde do Almirantado (Ministro da Marinha) o famoso Winston Churchill... Em 1911 os ingleses recusaram o pedido turco de uma aliança permanente, mas deixaram claro que "seria bom para a Turquia" manter a amizade britânica. Os diplomatas ingleses não acreditavam que a Turquia viesse a ter qualquer importância no futuro, e nada fizeram para garantir a amizade ou mesmo a neutralidade do Império Otomano. O governo dos "Jovens Turcos", que havia promovido uma espécie de revolução na Turquia em 1908, não era especialmente germanófilo (apenas um de seus membros era declaradamente favorável à Alemanha), era cauteloso porque as forças de Rússia e Inglaterra estavam próximas de seus territórios, mas estava bastante decepcionado com o pouco caso dos ingleses. Assim, quando a Alemanha, desesperada para minorar o problema de uma guerra em duas frentes, ofereceu grandes vantagens à Turquia os turcos acabaram pedindo uma aliança formal com aquele país, em 28 de Julho de 1914: o pedido turco foi avaliado e aceito no mesmo dia! Mas os turcos não assinaram a aliança, temiam que a Alemanha não vencesse a guerra. Contudo, como disse a escritora Barbara Tuchman, "enquanto os turcos hesitavam, a Inglaterra ajudou-os a decidir"...

Os ingleses, inspirados por Winston Churchill, resolveram pura e simplesmente CONFISCAR os dois navios que os turcos haviam comprado e que estavam praticamente prontos, e incorporá-los à sua própria marinha. Repare que os navios já estavam pagos, e que o dinheiro havia sido levantado através de uma subscrição popular na Turquia, com grandes sacrifícios. Para completar o ato de pirataria o governo inglês enviou um telegrama ao governo turco declarando que esperava que este entendesse as necessidades da Inglaterra naquela crise (a iminência de guerra com a Alemanha), e que o governo britânico "lamentava sinceramente" o problema. A arrogância britânica era tal que nada foi dito sobre uma eventual compensação financeira ou diplomática, para os ingleses o Império Otomano valia menos do que dois navios de guerra... Um ato de arrogância boçal e inconseqüente do qual os ingleses se arrependeriam amargamente. O telegrama foi enviado em 3 de Agosto, no mesmo dia a Turquia assinou a aliança com a Alemanha, mas não declarou guerra à Rússia como prometera. O governo turco resolveu esperar mais, pois temia que a entrada da Inglaterra na guerra complicasse as coisas. Os alemães então resolveram por sua vez ajudar os turcos a se decidir...


A viagem do Goeben

Quando em fins de Julho de 1914 a guerra com a Alemanha parecia iminente os franceses passaram a ter mais uma preocupação: trazer o Corpo Colonial, suas melhores tropas, do Norte da África para a Europa em segurança. Os franceses temiam um esquadrão alemão, composto de dois navios o cruzador de batalha Goeben e o cruzador leve Breslau que vinham "mostrando a bandeira" da Alemanha no Mediterrâneo desde 1912, e como a Inglaterra ainda esperava o "motivo sério" os franceses resolveram montar comboios próprios para os navios de transporte de tropas.

O receio dos franceses não era exagerado: o Goeben era mais veloz que qualquer dos navios franceses e seu armamento (comparável ao de um couraçado "Dreadnought") poderia permitir que ele afundasse uma quantidade razoável de navios de transporte. No dia 2 de Agosto de 1914 o Goeben e o Breslau estavam em Messina na Itália, esperando pela ordem para atacar os transportes franceses, como havia sido planejado originalmente. Mas, devido à indecisão da Turquia o governo alemão achou melhor mandar os dois navios a Constantinopla (atual Istambul), para forçar os turcos a cumprirem sua parte na aliança recentemente assinada. O comandante do esquadrão alemão, almirante Souchon, só receberia a ordem na madrugada de 4 de Agosto, decidiu partir de Messina para o oeste na madrugada de 3 de Agosto para atacar os transportes franceses.

Às 6 da tarde de 3 de Agosto o almirante Souchon recebeu a notícia de que a Alemanha declarara guerra à França (embora a Inglaterra continuasse de fora) e apressou-se em direção aos portos da costa argelina (a Argélia era colônia francesa na época), enquanto os franceses faziam o mesmo vindo de Toulon. Na madrugada de 4 de Agosto, já avistando a costa argelina o almirante Souchon recebeu a ordem de levar seus navios para Constantinopla. Decepcionado em ter de abortar a batalha, resolveu porém bombardear os portos de Philippeville e Bône, usando a bandeira russa (...!), prática aceita pelo manual de guerra naval alemão, não obstante contrariar a Convenção de Haia (que a Alemanha também assinara...). Em seguida os alemães rumaram para Messina para se reabastecer com o carvão necessário para alcançar Constantinopla. Neste ponto é interessante notar que nem os franceses nem os ingleses tinham a menor idéia da missão do Goeben, os franceses postaram-se de forma a impedir a saída do navio do Mediterrâneo, e os ingleses ainda nominalmente fora da guerra cruzaram com os dois navios alemães quando estes retornavam para o leste, mas não puderam fazer nada (tinham permissão para atirar se os alemães atacassem os transportes franceses, o que eles não fizeram). Souchon foi para Messina para se abastecer de carvão, e os ingleses postaram suas forças principais a OESTE do estreito, pois acreditavam piamente que os alemães tentariam chegar ao Atlântico (nesse ínterim a Inglaterra já havia declarado guerra à Alemanha, mas a Itália embora aliada da Alemanha mantinha sua neutralidade, impedindo que os ingleses atacassem os navios alemães no porto). Souchon ficou durante os dias 5 e 6 de Agosto em Messina, com os italianos tudo fazendo para complicar o reabastecimento dos navios alemães, e recebeu a notícia de que deveria adiar a entrada em Constantinopla e praticamente foi autorizado a seguir o rumo que quisesse. Sem poder contar com toda a força de suas caldeiras (o que seria indispensável para sobrepujar seus inimigos e alcançar o Atlântico) o almirante Souchon decidiu rumar para Constantinopla para forçar a Turquia a declarar guerra à Rússia.

Havia um esquadrão de cruzadores blindados britânicos na saída do Mar Adriático, mas quando os navios alemães passaram por eles seu comandante interpretou que a ordem de "não enfrentar forças superiores" aplicava-se ao caso (o Goeben poderia com certa facilidade afundar todos), e nada fez, e os alemães continuaram rumando para leste, com as outras unidades britânicas em seu encalço. A perseguição continuou, com os britânicos mantendo os alemães sob vigilância até a ilha grega de Creta, quando os ingleses fizeram alto e postaram-se de forma a impedir a saída dos alemães do Mar Egeu, sem saber que os alemães não queriam sair... No dia 9 de Agosto os navios alemães encontraram um carvoeiro alemão e reabasteceram-se, o almirante Souchon também enviou um dos navios mercantes que o acompanhava a Esmirna para mandar uma mensagem ao embaixador alemão em Constantinopla, para que este conseguisse que os turcos permitissem que os navios alemães penetrassem nos estreitos, que agora estavam minados.

Durante dois dias os alemães tentaram convencer o governo turco a permitir a entrada dos navios alemães, e sua pressão teve êxito, às 21h de 10 de Agosto de 1914 o Goeben e o Breslau entraram nos estreitos dos Dardanelos, alterando possivelmente todo o destino da humanidade. Os ingleses classificaram a notícia como "interessante" e acreditaram que apenas insistir para que os turcos retirassem as armas e os tripulantes dos navios alemães seria suficiente para neutralizar a ameaça. Alguns mais exaltados (ou mais realistas) propunham que se "entrasse atrás dos alemães", mas essa opção foi excluída pelos ingleses para não provocar os muçulmanos: uma parcela considerável da população da Índia (a maior e mais importante colônia britânica) era muçulmana e via o Sultão Otomano como seu líder espiritual, tudo que os ingleses não queriam naquele momento era uma rebelião na Índia. Os embaixadores francês e inglês pressionaram arduamente o governo turco, e o embaixador alemão fazia o mesmo, cada qual querendo trazer a Turquia para o seu lado. Subitamente um dos ministros turcos teve uma idéia brilhante: os alemães poderiam ter vendido aqueles dois navios à Turquia, para compensar os dois navios que os ingleses lhes haviam confiscado! Todos entusiasmaram-se com a idéia e os navios foram rebatizados como Jawus e Midilli, tiveram a bandeira alemã substituída pela turca, e os tripulantes passaram a usar uniformes turcos, embora o governo alemão controlasse de fato os navios. Essa ação aumentou enormemente a popularidade da Alemanha na Turquia, que já era razoável desde 1913 quando uma missão militar fora enviada para modernizar o exército turco. Mesmo assim a Turquia continuava adiando a sua declaração de guerra à Rússia, e tentando cobrar um alto preço por sua neutralidade aos aliados França, Inglaterra e Rússia.

Durante três longos meses os turcos hesitaram, as pressões de ambos os lados se sucediam, e os alemães, fartos de esperar, resolveram cortar o nó górdio e mandaram os dois navios bombardearem portos russos no Mar Negro, no dia 28 de Outubro de 1914. Após esse ato, cometido em nome da Turquia os navios, comandados pelos alemães, retornaram a Constantinopla e viraram seus canhões para a cidade. O governo turco tentou repudiar este ato, a Rússia exigia a expulsão da missão militar alemã, mas nada podia ser feito pois o próprio governo turco, sua capital e o próprio sultão eram reféns dos canhões alemães. Como resultado no dia 4 de Novembro a Rússia declarou guerra à Turquia, sendo seguida pela Inglaterra e França no dia 5 de Novembro. Mas as conseqüências não pararam por aí.


Epílogo

As conseqüências da viagem do Goeben foram dramáticas. Declarando guerra à Turquia a Rússia ficou bloqueada por aquela no Mar Negro, da mesma forma que era bloqueada pela Alemanha no Mar Báltico. Com isso suas exportações sofreram uma queda de nada menos que 98% e suas importações caíram assombrosos 95%. Apenas dois grandes portos estavam disponíveis para o Império Russo: Arcângel, bloqueado pelo gelo no inverno, e Vladivostok, a 13000 quilomêtros do local onde se travava a guerra. Naturalmente que o estrangulamento industrial e econômico da Rússia foi acelerado por este bloqueio (mais do que o bloqueio inglês pôde fazer com a Alemanha), somando-se a inépcia de seus governantes e os séculos de erros, o resultado foi a Revolução de 1917, e a guerra civil que se arrastou até 1921. Afirmar que a viagem do Goeben CAUSOU a Revolução Russa é um exagero, mas sem dúvida a viagem ACELEROU o processo, que descambaria em um regime totalitário de esquerda, cujo requinte de crueldade chegaria ao ápice com Stálin e seus expurgos. O "medo do comunismo" foi possivelmente um dos maiores fantasmas do século XX: por medo do comunismo surgiram as ditaduras fascista e nazista (que ceifaram quase tantas vidas quanto as ditaduras comunistas); golpes de estado em todos os continentes para evitar golpes comunistas (reais ou imaginários); uma caríssima corrida armamentista que quase levou o mundo à destruição; perseguições a políticos, artistas e intelectuais em vários países (fossem comunistas ou não); milhões de vidas perdidas; danos econômicos incalculáveis.

E o que o Oriente Médio tem a ver com isso. O Império Otomano controlava o Oriente Médio, Inglaterra e França tiveram que deslocar forças para a região para proteger as rotas para a Índia, houve campanhas na Mesopotâmia, Suez e na própria Palestina (inclusive a famosa revolta árabe que fez a fama de Thomas Lawrence, o Lawrence da Arábia). Essas tropas e recursos talvez tivessem sido melhor empregadas em outros locais, e o resultado final foi a partilha do Oriente Médio (acordo Sykes-Picot) entre França (que ficou com a Síria e o Líbano) e a Inglaterra (que ficou com a Palestina e a Jordânia), partilha esta que foi feita (tal como havia sido feito na África) sem muita consideração por grupos étnicos ou fronteiras naturais. Ao gerir a Palestina os ingleses usaram um expediente largamente empregado por eles na Índia: jogaram os grupos religiosos uns contra os outros para dominá-los melhor, com os resultados que se fazem sentir até hoje em dia. Os ingleses perderam milhares de vidas e gastaram milhões de libras por causa de sua arrogância, tanto na I quanto na II Guerra Mundial, e após a intervenção em Suez em 1956 perderam praticamente toda a influência no mundo árabe.

Acredito que Winston Churchill deve ter "lamentado sinceramente" sua decisão arrogante, pois ele reconheceu que o Goeben e o Breslau causaram "mais chacina, mais sofrimento e mais destruição do que jamais esteve ao alcance de um navio".


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