Universidade Federal de Santa Catarina
Departamento de Informática e de Estatística
Curso de Pós-Graduação em Ciência da Computação
Disciplina: Informática Aplicada à Educação

Síntese elaborada por Luciana Schuch Kreutz
 


A Convivencialidade
ILLICH, Ivan

Publicações Europa-América. Lisboa,1976


 

"A convivencialidade, segundo o autor, é a liberdade individual, realizada dentro do processo de produção, no seio de uma sociedade equipada com ferramentas eficazes".

O autor analisa o modo como as ferramentas são vistas e tratadas pela sociedade. Ele acredita que o uso e o desenvolvimento destas ferramentas devem respeitar um certo limite. Que quando o trabalho com estas ferramentas ultrapassar este limite, as ferramentas tornar-se-ão não mais aliadas da sociedade mas sim a dominarão.

Como exemplo o autor identifica dois limiares de mutação que ocorreram na história da medicina: o primeiro limiar ocorreu no início do século, por volta de 1913, quando o sucesso na medicina era medida por dados estatísticos. Mas nesta época a melhoria da medicina não se deu pelo fato da medicina estar mais confiável e hábil para curar, mas sim pela melhoria nos cuidados com a higiene, alimentação e moradia. O segundo limiar acontece quando, após a segunda guerra mundial, evidenciou-se que a medicina moderna produziu novos tipos de doenças. A medicina fabricou uma legião de indivíduos vitalmente dependentes de um meio cada vez mais caro, e que somente os privilegiados poderiam desfrutar desta nova ferramenta.

A super produção industrial de uma ferramenta impõe o homem a viver para o ferramenta e não que esta ferramenta o auxilie para viver. Contradizendo, então, o conceito de sociedade convivencial, onde o homem tem liberdade de exercer uma atividade mais autônoma e criativa, com o uso das ferramentas.

Segundo o autor: "A ferramenta justa corresponde a três exigências: é criadora de eficiência sem degradar a autonomia pessoal; não provoca nem escravos nem senhores; amplia o raio de ação pessoal."

A ferramenta é inerente à relação social. Enquanto existir o homem, ele vai servir-se de ferramentas. Quer ele a domine, quer seja por ela dominado, a ferramenta ou o liga ou o desliga do corpo social. Enquanto ele dominar a ferramenta, dá ao mundo o seu sentido; quando a ferramenta o dominar, a sua estrutura conforma e informa a representação que ele tem dele mesmo. Ferramenta convivencial é aquela que o deixa a maior latitude e o maior poder para modificar o mundo de acordo com a sua intenção. A ferramenta industrial nega a ele este poder.

Para traduzir na prática a possibilidade teórica de um modo de vida pós-industrial e convivencial, precisamos assinalar os limiares a partir dos quais a instituição gera frustração e os limites a partir dos quais as ferramentas exercem um efeito destrutivo sobre a sociedade no seu conjunto.

O autor abordou cinco ameaças que o desenvolvimento industrial sem limites ocasiona para a população mundial. São regidas, segundo o autor, por uma total inversão.

São elas:

Três pontos podem ser abordados e que contribuem para o desequilíbrio ecológico: o crescimento demográfico; a super abundância; e a perversão da ferramenta.

"O crescimento demográfico faz depender um maior número de pessoas com recursos limitados, a superabundância obriga cada indivíduo a depender mais da energia e a ferramenta destrutiva degrada esta energia sem benefício."

A superpopulação é resultante de um desequilíbrio da educação, a superabundância provém da monopolização industrial dos valores pessoais, que a perversão da ferramenta é um efeito inelutável da inversão dos meios em fins.

"A restauração de um equilíbrio ecológico depende da capacidade do corpo social para reagir contra a progressiva materialização dos valores, na sua transformação em áreas técnicas." É preciso reconhecer que só a pessoa tem fins e que só a pessoa pode trabalhar para os realizar.

É entendido, pelo autor, "como um tipo de domínio através de um produto" e não apenas de uma marca. Instaura um consumo obrigatório, limitando a autonomia da pessoa. "É um tipo particular de controle social, reforçado pelo consumo obrigatório de uma produção em massa que só as grandes indústrias podem garantir." Não se beneficia a grande massa, mas contribui-se para aumentar o poder, pertencente a uma minoria para determinar quais as ferramentas que o homem deve usar. O monopólio radical ameaça congelar a criatividade. Esta situação depõe contra a capacidade inata do ser humano de cuidar de si mesmo, isto é, de satisfazer suas necessidades. O monopólio radical rarefaz estas satisfações à medida que estabelece o abandono da capacidade inata da pessoa em troca de algo melhor que só uma ferramenta dominante pode produzir. É a industrialização dos valores, quando a "resposta pessoal é substituída pelo objeto estandardizado."

A dificuldade enorme para a defesa contra a generalização do monopólio radical vai além das soluções paliativas. Passa, obrigatoriamente, por uma única condição: "que se consiga, no plano político, um acordo unânime sobre a necessidade de por termo ao crescimento."

Segundo o autor, duas variáveis – o saber que provém das relações criadoras entre o homem e o meio e o saber coisificado do homem impelido pelo seu meio instrumentado – determinam o equilíbrio do saber numa sociedade.

O primeiro saber provém das relações espontâneas entre as pessoas, privilegiando a ferramenta convivencial. O segundo saber é fruto da capacitação intencional e programada, privilegiando a operação disciplinada (aprendizagem).

A massificação impõe cada vez mais limites ao saber espontâneo, tornando o saber um bem sujeito à escassez. "É então que a educação se transforma na questão mais candente para a sociedade." "Substituir o despertar do saber pelo da educação é afogar o poeta no homem, é congelar nele o poder de dar sentido ao mundo".

A superprogramação ameaça transformar o planeta numa vasta zona de serviços.

O desafio, segundo o autor é, portanto, o equilíbrio do saber. Evitar o esmagamento do pensamento criador pelo dogma da educação formal condicionante. O autor advoga que o restabelecimento do equilíbrio do saber depende da:

"A produção industrial e a comercialização maciças do saber cortam às pessoas o acesso a ferramentas para compartilhar o saber."

O alfabeto rompeu o monopólio exercido pelos sacerdotes sobre o hieróglifo, e mais tarde a imprensa, iniciando uma nova era de comunicação convivencial. No entanto, "o privilégio atribuído às instituições com estruturas manipuladoras colocou estas ferramentas ao serviço de um ensino ainda mais unívoco e monologado." Isto faz subir o preço do saber. Pergunta-se, inicialmente, sobre o que se deve aprender e, em seguida, investe-se num instrumento a fim de o ensinar.

O autor defende que não há necessidade de mais ensino. Os homens precisam aprender só certas coisas. Uma delas: a renunciar, a viver dentre de certos limites, controlando, por exemplo, a sua reprodução, o seu consumo e o uso das coisas. Isto, porém, deve processar-se dentro de uma maneira convivencial e não apenas pela ferramenta elaborada, complexa, que cria dependência e condicionamento.

Enquanto a crescente polarização do poder entre o rico e o pobre se estabelece, a insatisfação se generaliza. O autor enfatiza que o desequilíbrio da balança do saber provoca o ponto-cego da visão social, explicando como o "desenrolar do monopólio radical de bens e serviços é quase imperceptível para o usuário."

"A condição do pobre pode ser melhorada desde que o rico consuma menos, ao passo que a condição do rico não pode melhorar senão à custa da expoliação mortal do pobre."

"A modernização da pobreza caminha de mãos dadas com a concentração do poder." "Enquanto a alta dos limiares da pobreza é resultante da estrutura do produto industrial, o crescente distanciamento entre inermes e poderosos é consequência da estrutura da ferramenta."

A polarização ameaça instituir um despotismo estrutural irreversível. A coexistência dos diversos modos de produção é condição para uma sociedade viável, capaz de ser o senhor do crescimento industrial e protetora da distribuição igual do poder permitindo um desfrute igual do haver.

A polarização social resulta de dois fatores combinados: o aumento dos custos dos bens e serviços produzidos e embalados pela indústria e a escassez crescente dos empregos considerados altamente produtivos.

O autor propõe que a reconstrução vivencial requer:

"A dinâmica de uma sociedade convivencial é função da amplitude de partilha do controle da energia, isto é, do poder de operar uma mudança real."

No atual sistema de usura, é o instrumento que impõe a direção e o ritmo da inovação.

Impõe-se para a reconstrução convivencial, a necessidade de o "corpo social proteger o poder das pessoas e das coletividades para modificar os seus estilos de vida, a suas ferramentas, o seu ambiente (...)."

A usura produz a desvalorização. Ameaça desarraigar a espécie humana. Obriga o consumidor a desprender-se daquilo que foi obrigado a desejar, a pagar e a instalar na sua existência. O nível de usura indica a situação que as pessoas ocupam na escala social. Por isso só alguns privilegiados têm acesso aos produtos de última criação. Cria permanente necessidade de troca de bens.

"A inovação do saber, tal como a do poder, pode florescer unicamente onde esteja protegida contra a usura industrial."

A sociedade da inovação convivencial situa-se entre a sociedade congelada e a de aceleração.

Quando o ritmo da indústria atravessa um certo limiar, a produção de instrumentos para adaptar (domesticar) o homem ao seu meio transforma-se na indústria dominante.

"A reconstrução convivencial exige que seja limitado o índice de usura e de inovação obrigatória."

Em cada um dos circuitos provocados pelo monopólio radical, pela superprogramação, pela polarização e pela usura, a ferramenta supereficiente afeta a relação do homem com o seu ambiente: ameaça provocar um curto-circuito fatal.

A pesquisa científica orienta-se, hoje, para garantir o progresso tecnológico, para produzir melhor melhores produtos, e aplicar a análise de sistemas de manipulação da sobrevivência da espécie humana, a fim de preservar o seu melhor consumo.

O autor sugere que para permitir ao homem realizar-se, a pesquisa futura deva seguir um rumo oposto, para chegar à raiz do mal, perseguindo dois objetivos: apresentar critérios que permitam determinar quando uma ferramenta atinge um limiar de nocividade e inventar ferramentas que otimizem o equilíbrio da vida.

A ferramenta não é ótima, mas também não é intolerável. Degrada o equilíbrio entre o preço pago pessoalmente e o resultado obtido. "Na medida em que a ferramenta avassala o fim que deveria servir, o usuário converte-se em presa de uma profunda insatisfação."

A superabundância de bens conduz à carência de tempo. Quanto mais alto subir na pirâmide da produção, menos tempo tem o consumidor para se entregar às atividades que não podem ser contabilizadas.

A investigação deve tornar sensível a degradação dos equilíbrios que estabelecem a sobrevivência. Deve determinar as categorias mais ameaçadas e ajudá-las a distinguir a ameaça. Deve fazer com que os indivíduos ou os grupos até então divididos tomem consciência de que sobre suas liberdades fundamentais pesam as mesmas ameaças. Mostra que a exigência de liberdade real, formulada seja por quem for, serve sempre o interesse da maioria.

Analisando os obstáculos e as condições da inversão política, o autor inicia, considerando que as cinco dimensões analisadas, se equilibradas, podem permitir a homeostase da vida humana.

O importante é não ultrapassar os limites, ou apagar as barreiras geográficas e culturais.

A ferramenta cresce de duas formas: para aumentar o poder do homem, através do controle, ou para substituí-lo pela máquina.

A idolatria da ciência, a corrupção da linguagem quotidiana e a desvalorização dos procedimentos formais são os três obstáculos, apontados pelo autor, que dificultam a sobrevivência dentro da liberdade no sentido da superação da onipotência da ferramenta e da atualização política dos limites. Advoga:

1o – A necessidade de desmitificar a ciência "uma agência de serviços fantasmal e onipresente." "Numa sociedade que se define pelo consumo do saber, a criatividade é mutilada e a imaginação atrofia-se."

O autor define duas espécies de saber: o saber do indivíduo, inferior, porquanto é do domínio da opinião, e expressão de uma subjetividade, não contribuindo, em consequência, para o progresso; e o saber da ciência, superior, objetivo, definido e divulgado pela ciência e seus porta-vozes entendidos.

Sob esta ótica, as regras do senso comum que permitiam aos homens conjugar e compartilhar as experiências, destroem-se.

"O consumidor-usuário tem necessidade de uma dose de saber garantido, cuidadosamente condicionado."

Nutrida por este mito da ciência, a sociedade entrega aos peritos até a preocupação de fixar limites ao crescimento, destruindo o funcionamento político. O limiar da tolerância humana não pode ser definido pelo perito. "A ciência pode iluminar as dimensões do reino do homem no cosmo, mas precisa de uma comunidade política de homens conscientes da força da sua razão, do peso de sua palavra e da seriedade dos seus atos para escolher livremente a austeridade que garantirá a vitalidade."

2o – Redescobrir a linguagem que reflete o monopólio que o modo de produção industrial exerce sobre a percepção e a motivação.

"Nas nações industriais, quando o homem fala de suas obras, as palavras que utiliza designam os produtos da indústria. A linguagem reflete a materialização da consciência."

A competição governada por valores industrializados reflete-se na nominalização da linguagem. Redescobrir a linguagem importa, pois, em aceder a um novo grau de consciência que nos permita reencontrar a função convivencial da linguagem.

3o – A recuperação do direito, enquanto forma de desvalorização dos procedimentos formais.

"A lei e o direito, nas suas formas atuais, estão, de maneira esmagadora, ao serviço de uma sociedade em expansão indefinida."

A ideologia da produtividade subjuga os processos de decisão. É a perversão do direito, devido ao uso abusivo que constantemente dele se faz.

"Se não nos pusermos de acordo sobre um procedimento eficaz, duradoura e convivencial, com o objetivo de controlar a instrumentação social, a inversão da estrutura institucional existente não se poderá iniciar e muito menos manter."

"O corpo de leis que regulam um sociedade industrial refletem inevitavelmente a ideologia, as características e a estrutura de classe, ao mesmo tempo que a reforçam e asseguram a sua reprodução."

Importa que o legislador "se desintoxique do crescimento, que as partes interessadas insistam na proteção dos seus interesses e que, com tal fim, se dediquem a uma reavaliação sistemática da evidências e das certezas demasiadas bem estabelecidas."

O que interessa não é a oposição entre uma classe de homens explorados e outra classe proprietária das ferramentas, mas a oposição que se situa entre o homem e a estrutura técnica da ferramenta.

Através da procura, por uma ativa maioria de indivíduos e de grupos, de um processo convivencial comum, pode-se, segundo o autor, obter o direito e o poder de determinar os cercos que se devem impor ao crescimento e os limites que otimizem uma civilização.

No capítulo final, o autor sugere, a reação política à ameaça do impacto da instrumentalização sobre o ambiente, que permita à população determinar o máximo que cada qual pode exigir num mundo de recursos limitados; um processo consensual para fixar os limites do crescimento e da instrumentação; um processo de estímulo à investigação radical, para que um número crescente de pessoas possa fazer cada vez mais com cada vez menos.

Para o autor, o maior impedimento para a reestruturação da sociedade é o poder da mitologia política. "Numa sociedade rica, cada qual é, de qualquer modo, consumidor-usuário. Cada qual desempenha seu papel na destruição do ambiente. O mito transforma esta multiplicidade de depredadores numa maioria política", o que paralisa toda a ação política real.

O autor defende a idéia de que o crescimento parará por si mesmo. "A paralisia sinérgica dos sistemas alimentícios provocará o derrube geral do modo de produção industrial."

Entende que a população perderá a confiança nas instituições dominantes e gestores da crise. Um acontecimento imprevisível, uma coincidência fortuita servirá de detonador da crise, pondo em evidência a contradição estrutural entre os fins oficiais das nossas instituições e os seus verdadeiros resultados.

Haverá um enfraquecimento das forças reinantes que esmagavam os grupos sociais, impedindo-os de participar no processo social.

Quanto mais inesperada for a crise, mais repentinamente os apelos à austeridade se transformarão num programa de limitações racionais.

Este acontecimento catastrófico deverá demonstrar que o desvanecimento da miragem industrial oferece a oportunidade de escolher um modo de produção convivencial e eficaz. Requererá grupos capazes de analisar a catástrofe e de a exprimir em linguagem comum, advogando a causa de uma sociedade com fronteiras, convivencial, na condição de utilizar, conscienciosamente, um processo regular que reconheça, ao conflito de interesses, a sua legitimidade, e se constitua num recurso lúcido, feito dentro de um espírito de oposição contínua à burocracia, estabelecendo, por acordo político, uma autolimitação. Os membros desta sociedade que põem fronteiras a si mesmos não precisam se constituir em maioria.

Entende o autor, finalmente, que só através do poder da linguagem (verbo) pode-se reunir a multidão dos homens para que a vaga da violência se transforme sem reconstrução vivencial.

Importa definir critérios de limitação à instrumentação para a reconstrução social dos países pobres para aceder a um modo de produção pós-industrial e convivencial.

A convivencialidade, como fruto de pessoas que utilizem uma instrumentalização efetivamente controlada, é finalmente apontada como a defesa contra o imperialismo das megaferramentas, que depõem contra a orientação convivencial proposta à sociedade.