Uma Viagem à Índia


 
 
 
 

Wanderlust: Fotografias de uma Viagem à Índia em 1990



Em muitas sociedades a "grande viagem" que um indivíduo empreende para conhecer o mundo é um ritual formalmente reconhecido no seio do grupo e que marca o final da adolescência e o início da vida adulta. O indivíduo que volta da viagem está transformado por ela e apto a ocupar seu lugar na sua tribo, agora calmo e sem vontade de inventar bobagens.

Observando as pessoas ao meu redor, vejo que realmente existe esse impulso de viajar para vivenciar algum lugar distante e diferente quando se chega aos seus vinte e poucos anos. No fundo do inconsciente coletivo de nossa espécie com passado nômade existe com certeza o institnto da viagem, que deve ter sido benéfico e porisso tido feedback evolutivo positivo no início da história evolutiva de nossa espécie, pois promove a ampliação de horizontes culturais, o que é importante em uma espécie que possui linguagem e logo cultura, além de promover também a migração do pool genético.

Na cultura alemã esse impulso é profundo e reconhecido culturalmente, tanto que existe um termo, Wanderlust, que traduzido literalmente significa o "anseio de vagar" ou o "desejo de peregrinar" (peregrinar é sempre no sentido laico, nunca religioso - peregrinação religiosa em alemão é Wallfahrt - "viagem aos muros (de Jerusalém)"), mas que na cultura alemã tem um um significado cultural mais profundo, pois wandern é também o esporte nacional de fazer longas caminhadas pelas florestas, as quais às vezes duram dias. Tanto o Wandern é arraigado que existe um ritual de passagem da Guilda dos Marceneiros e Carpinteiros protegido por lei, onde o jovem aprendiz-marceneiro para poder receber a Carta-de-Mestre tem de passar pelo Wanderjahr, o "ano de peregrinação" onde ele viaja a pé por um ano pela Alemanha, vestindo as roupas de couro típicas da profissão e vivendo apenas do que recebe oferecendo seus serviços em oficinas, construções e carpintarias, inclusive dormindo às vezes ao relento
(em inglês o termo é usado de forma mais ampla e chamado de Gap Year). Atrapalhar um ou uma jovem no Wanderjahr é crime previsto por lei.


Figura
: Gesellen (aprendizes) em indumentária tradicional em meio à jornada.


No Brasil isso tudo, como tantas outras coisas, é mais informal. Em 1989, após me formar, eu decidi que estava na hora de definir o meu doutorado e também de ver outra coisa além de universidade e laboratórios. Assim eu acertei os ponteiros para fazer uma pós na Alemanha e fiz uma rota para chegar lá passando pelo outro lado do mundo: a Índia. Dessa forma acabei passando 2 meses por lá, viajando nas primeiras duas semanas com uma excursão e depois fazendo o resto por conta e de mochila nas costas. Este é o registro fotográfico dessa viagem, realizado no período de Janeiro a Fevereiro de 1990.

Esta Coleção de Fotografias

Viajei por grande parte da Índia, usando os meios de transporte mais variados, do onipresente trem passando por rikishás e ônibus decrépitos, aviões nos mais diversos estados de decomposição e até um trenzinho de cremalheira bitola estreita Himalya acima. Durante a viagem tirei mais de 400 fotografias de boa qualidade usando filme Fuji e uma câmara reflex alemã oriental Praktika possuidora de vários conjuntos de objetivas das origens mais variadas, da Zeiss original passando por um zoom Vivitar quase desmanchando até uma grande angular Pentax. O meu objetivo é documentar toda a viagem organizando as fotos por região da ìndia. Estou com esse objetivo na cabeça faz 10 anos e nunca acho tempo. Porisso resolvi ser pragmático e disponibilizar aqui algumas das fotos para começar a divulgar o que vi.  As fotos foram retiradas do meu álbum, limpas e escaneadas do papel e não do negativo, significando que você vai enxergar sinais de deterioração nas imagens, típicas de papel fotográfico velho. Faz parte, quem mandou eu não escanear dez anos atrás.

A Índia de 1990

Estas fotos retratam a Índia tal qual ela era no Inverno 1989-1990. Isto já faz quase 20 anos e essa com certeza não é mais a Índia que você vai encontrar se for lá hoje. A  globalização e em especial a informatização e a entrada da Índia no mercado de serviços de informática transformaram-na profundamente. Algumas sementes dessa transformação já estavam visíveis nesse início de 1990, quando a Índia estava vivendo um processo de abertura econômica similar ao pelo qual o Brasil passou  a viver poucos meses depois, gerando contrastes entre tecnologia e caos extremamente interessantes para um brasileiro acostumado a outros tipos de caos.  Só para dar um exemplo: a venda de bilhetes de trem era totalmente informatizada, o bilhete numerado, com assento fixo e impresso nominalmente, mas na hora de sentar tinha um sujeito aninhado dormindo no porta bagagem acima do banco com o braço pendurado para baixo e roçando no meu nariz a viagem inteira, feito pau-de-arara de filme de interior brasileiro. Tive de colocar a minha mochila a meus pés e ficar apertado num canto. Imagino que muitas coisas não tenham mudado: ninguém muda em 20 anos uma cultura com 3.500 anos de tradição!  Agradeceria comentários.

Nova Delhi

Nova Delhi é uma cidade planejada (quando você está lá, à exceção da onipresentes rótulas, nada parece planejado) para ser a capital da Colônia Imperial. O arquiteto e paisagista britânico Edwin Lutyens foi o responsável pela maior parte desse planejamento. Ela é vizinha da Delhi Velha e não existe uma fronteira clara a não ser arquitetural e viária. Quem espera encontrar só sujeira e pobreza, se espanta com a arquitetura (o caos de tráfego tem lá também) de Nova Delhi. Abaixo alguns exemplos contrastantes com Delhi Velha.



Templo Baha'í ao por do sol. O templo em formato de flor de lótus possui 9 entradas simbolizando as 9 Religiões Mundiais que a Fé Baha'í se propõe a unificar em uma única corrente religiosa de influência pós-islâmica. Discussões sobre o sincretismo religioso à parte, a arquitetura é de uma beleza impressionante.



Interior do Hotel Meridien New Delhi. Ficamos neste hotel por conta da excursão na minha primeira passada em Delhi.



Agência do Citibank de Nova Delhi em Connaught Place. Estava em fase final de construção em Janeiro de 1990.



Cena de dentro de um típico taxi ao voltarmos da visita ao templo Baha'í. O carro parece antiqüíssimo, mas não é: este estilo de carro, parecendo carro inglês da década de 1950, estava ainda sendo produzido na Índia nessa época. Nesse tempo estavam começando a produzir carros mais modernos, o que pode ser observado na van à direita e no carrinho visível no reflexo solar, ambos da recém inaugurada montadora da Suzuki.



Estação central de Nova Delhi, com o "trem-bala" indiano ao fundo. Esta locomotiva, moderníssima para padrões indianos e mais ainda para os miseráveis padrões ferroviários brasileiros de 1990, fazia a rota Delhi - Agra (a cidade do Taj Mahal) puxando um comboio de vagões de relativo luxo. O trem era usado tanto por executivos como por turistas e fazia a rota em duas horas.  Aqui é importante notar que, graças aos ingleses, a Índia possui a maior malha ferroviária de mundo, sendo que as passagens são baratíssimas e os indianos viajam muito. Uma passagem nesse que era talvez o trem mais caro de toda a Índia na época nos custou menos que uma passagem de ônibus São Paulo-Rio. Outro fato interessante é que na época as estações de trem, assim como pontes e instalações de antenas parabólicas (sic!) eram consideradas "áreas de segurança nacional" e fotografá-las era proibido (havia placas de proibido fotografar até do lado de uma parabólica em um postinho policial no Himalaya). Para tirar essa foto segurei a máquina dentro do meu casaco sob o braço, apontei e fotografei. Para uma foto ao amanhecer, com pouca luz, até que ficou razoável.

Velha Delhi

A cidade velha de Delhi contrasta imenso com a cidade nova. Aqui alguns exemplos, começando pelo café da manhã com samosas numa feira diante de Forte de Delhi (Red Fort). Por quê brasileiros parecem brasileiros nas fotos ?



As samosas são pasteizinhos indianos, geralmente com recheio de batatas com ervilha e (muito, muito mesmo) curry ou então queijo branco de búfala com (muito, muito mesmo) curry. Uma delícia! Comi muito. É a comida típica das rodoviárias e paradas de ônibus do interior onde sempre tem um vendedor de samosas com um carrinho (tipo o nosso extinto carrinho de cachorro quente) fritando na hora e vendendo. Esse "x-samosas" daí tinha já várias pilhas de prontos esperando chegar a clientela.



Aqui obviamente estavam esperando por turistas que ainda não apareceram para o desjejum. Observe que os indianos sentados no centro da foto  são muito provavelmente turistas só que turistas indianos, de outra região. O turismo dentro da Índia era, na época pelo menos, muito encorajado e praticado. Ao fundo: muralhas do Forte Lal Qil'ah (Red Fort).




Você consegue imaginar um trânsito de bicicletas de tal forma intenso que existe um quase constante engarrafamento ciclístico ? pois é, esse é o centro de Delhi Velha. São bairros e mais bairrros de casas de 2 ou 3 andares, separadas por ruas ou simplesmente por vielas estreitas, com intenso comércio de absolutamente tudo e um tráfego de bicicletas e rikishás ciclísticos estonteante.




Crianças indianas são sempre muito bonitas e comunicativas. Essas daqui estavam se divertindo em posar para o fotógrafo.



Letargia pós-prandial em um beco.



Depois da bicicleta e do rikishá, a Índia é o paraíso da lambreta.



Esse rikishá é uma peça de engenharia: o que parece ser a parte dianteira de uma Moto Java de 150 cc está puxando uma carroceria onde a lotação é 8 pessoas! E anda...



Vista de Delhi Velha do alto de um minarete da Masjid-i-Jahan Numa (Mesquita de Delhi ou Jama Masjid). O minarete podia ser visitado pelo público nesta que é a principal mesquita de Delhi e que foi mandada construir pelo mesmo Shá Jahan que construiu o Taj Mahal.



Trafego instenso de ciclo-rikishás...



O típico auto-rikishá: frente de lambreta e traseira em formato de banquinho fechado. Observe a suástica levógira: na Índia isto não tem nada de nazista.



Torre do Red Fort. O arenito vermelho utilizado em muitas construções através da Índia confere um aspecto espetacular a estas construções.



Entrada do Red Fort. Observe que é tudo esculpido com detalhes e desenhos: além de servir como instalação militar, o forte tinha também a função de mostrar o poder do Shah, ostentando com estética onde ela não era necessária.



Vista do espelho d'água (agora seco) existente no interior da casa do harém do Red Fort. A vista dá para o pátio interno, por onde o espelho d'água passava. Observe que tudo é feito de mármore branco adornado com pedras semipreciosas engastadas (e roubadas) nas paredes. Espelhos d'água eram instalações de ar-condicionado da época: refrescavam e aumentavam a humidade do ar nos meses secos. O arco é realizado em uma única peça de mármore: qualquer erro do artesão ao esculpir e ele podia começar tudo de novo.



Mesquita
Masjid-i-Jahan Numa (Mesquita de Delhi ou Jama Masjid). Tirando os sapatos infiéis podiam visitar o seu interior. Mais tarde subimos num dos minaretes.



O minarete.... Observe o megafone do lado externo do minarete para ajudar o muezzin.




O necessário encantador de serpentes: demorei a achar um, mas achei aqui neste local turístico (Qutab Minar). A serpente estava sem vontade de dançar, então ele a pegou na mão e sacudiu um pouco....O "cobrador" já estava me oferecendo o cesto para não me dar chance de achar que cobra cansada na mão não é cobra dançarina.



Qutab Minar: não só no Brasil e no Egito tem obra faraônica. Este é o maior minarete do mundo, todo circundado com suras do alcorão entalhadas no arenito vermelho. Para construir a mesquita que o deveria acompanhar o dinheiro nunca chegou.